02 junho 2006

A Crise da Transmissão da Fé

A Crise da Transmissão da Fé


A transmissão da fé em nossa cultura secularizada requer de nós novos cuidados e preocupações que nossos pais não tiveram
Uma preocupação que vem crescendo e provocando muitas conversas tanto dentro da Igreja Católica como na Evangélica é o da transmissão da fé para as futuras gerações. Na Europa, alguns estudiosos já demonstraram isso em trabalhos como o do espanhol Juan Martin Velasco, que escreveu La transmissión de la fé en la sociedad e do bispo alemão J. J. Degenhardt, com seu livro Crisis of the transmission of the faith, em que ambos apontam um fenômeno, não só europeu, mas ocidental, envolvendo principalmente as igrejas cristãs.
Existem várias causas para isso, mas a secularização da sociedade ocidental é apontada por todos como a causa primeira desta crise. Olhando para o Brasil, vemos uma Igreja que ainda cresce numericamente, mas que tem perdido sua relevância cultural, social, política e econômica. E vem perdendo também suas raízes históricas e teológicas. Uma Igreja que oferece uma infinidade de programas, atividades e várias formas de entretenimento religioso, mas que tem perdido a capacidade de criar, principalmente nas novas gerações, um grau de compromisso e fidelidade para com a verdade bíblica. O que os membros fazem no domingo tem pouca ou nenhuma relação com o que fazem nos outros seis dias da semana. Nossas tradições foram descartadas, nossos valores relativizados e nossas convicções se transformaram em discretas e frágeis impressões religiosas. Vemos também, inclusive dentro da Igreja cristã, a intensificação do individualismo como resposta à secularização e o crescente movimento da moderna psicologia, que valoriza o “indivíduo autônomo” em sua busca pela auto-realização.
Diante de um cenário assim, ao olhar para o futuro do cristianismo, somos tomados por um sentimento de apreensão e perplexidade. Por um lado, sabemos que a Igreja é de Cristo e é ele quem a sustenta e guarda – no entanto, a história da Igreja é dinâmica e, em muitas nações e até continentes onde ela já foi viva e forte, hoje não é mais. Portanto, temos que refletir sobre nosso papel nesse processo e como será o processo de transmissão da fé para as novas gerações.
A transmissão da fé em nossa cultura secularizada requer de nós novos cuidados e preocupações que nossos pais não tiveram. No passado, com a centralidade da religião e da família na cultura ocidental, o processo era natural. Hoje, nenhuma das duas ocupam mais este lugar. Antigamente, os valores e convicções cristãs eram claramente definidos e aceitos socialmente. Eram eles que estabeleciam uma fronteira clara entre o que era certo e errado ou entre o que era pecado e o que não era. A identidade do cristão era socialmente bem definida, o que lhe dava também uma certa segurança e responsabilidade. Agora, não – falta essa identidade clara e os valores e convicções evaporaram. A grande pergunta que se coloca diante de nós é: como iremos transmitir para nossos filhos e netos os valores e princípios da fé cristã?
A nova preocupação com a “espiritualidade” pode ser uma resposta à crise da transmissão da fé. Muitos têm confundido espiritualidade com uma forma de intimismo religioso que surge como resposta ao individualismo secularizado, intensificando a alienação e não promovendo um relacionamento real e verdadeiro com o Deus triúno da graça. Para ser relevante, a espiritualidade precisa oferecer uma resposta à crise da transmissão da fé, fundamentando-se na revelação bíblica de Deus como uma Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo).
Uma espiritualidade fundamentada na Trindade nos conduz a um relacionamento pessoal com Deus-Pai que não é fruto de uma compreensão particular e intimista, mas da revelação que Jesus, o Filho unigênito nos apresenta. Conhecer a Deus Pai não é o resultado das projeções das nossas melhores intenções paternas, mas o resultado exclusivo da relação única que o Filho eterno tem na comunhão com o Pai. Somente Cristo é quem nos revela a natureza paterna de Deus. Conhecer a Cristo é conhecer aquele que nos foi enviado pelo Pai e que realizou por nós, na cruz do Calvário, a gloriosa obra da reconciliação através da justificação e do perdão dos nossos pecados. Compreender o que Jesus fez na cruz e responder ao Pai em comunhão, obediência e adoração só nos é possível pelo poder do Espírito Santo, que abre nossos olhos, levando-nos a compreender nosso pecado e a necessidade de redenção. E que também nos abre para Deus por meio de Cristo e para a comunhão com os santos.
O caminho para enfrentar a crise da transmissão da fé passa por uma espiritualidade centrada na Trindade e nas Sagradas Escrituras. Somente a partir de um relacionamento pessoal com o Deus trino da graça é que poderemos recuperar o valor daquilo que é verdadeiro e resistir à subjetividade da cultura secular. Compreender a realidade a partir da revelação de Deus em Cristo, e não através da psicologia e sociologia modernas, nos libertará da percepção reducionista da cultura secular e nos conduzirá a uma compreensão profunda e realista da natureza humana, da nossa condição social, dos propósitos da criação e da comunhão com o Senhor e com o próximo.
Olhar para a realidade a partir da auto-revelação de Deus em Cristo nos conduzirá a uma nova dinâmica de vida e fé onde todos os eventos, encontros, experiências, desejos, ações e paixões serão holisticamente absorvidos em Cristo. É isso que nos tornará mais verdadeiros e nos conduzirá à vida abundante prometida pelo Senhor. O legado que precisamos deixar para as novas gerações envolve um caminho de fé que nos conduza a uma completa rendição e entrega, da mesma forma como o Filho de Deus se entregou por nós em amor e obediência ao Pai. Somente através de uma conversão real e dinâmica é que as novas gerações irão reconhecer o valor pessoal, histórico e social da fé cristã e responderão a ela numa vida de obediência, amor, comunhão e serviço.

Ricardo Barbosa de Souza é conferencista e pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasilia

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